Participantes expõem problemas do marco temporal em seminário do Centro Universitário Dom Helder e da UFMG

Fotos: Marcella Ribeiro/Dom Helder

As contradições formais e a ameaça aos direitos indígenas foram o foco de diversas participações da sociedade civil e da comunidade acadêmica no seminário “Marco temporal e conflito judiciário: entre precedentes judiciais e políticas indigenistas”, realizado pelo Centro Universitário Dom Helder em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 

Na mesa diretiva, que abriu o evento do dia 26 em Belo Horizonte, o advogado e assessor de Direitos Humanos da FIAN Brasil Adelar Cupsinski resumiu o histórico, as controvérsias processuais e a posição – contrária – da entidade ao dispositivo, que prevê que os indígenas só possam ter confirmada a posse de terras em que se encontravam – ou que reivindicavam – em outubro de 1988, quando da promulgação da atual Constituição Federal.

Cupsinski contou que essa lógica, considerada uma tese jurídica e depois derrubada pelo próprio Supremo Tribunal Federal (STF), foi originalmente validada pela corte no julgamento do caso da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol. Os ministros aprovaram a homologação da TI como área contínua (em vez de em “ilhas”), emitindo, porém, condicionantes que limitavam o usufruto exclusivo dos povos sobre seus territórios, vedavam a ampliação/revisão das áreas demarcadas e limitavam o direito de consulta, exigido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – que determina que as comunidades sejam ouvidas de forma “livre, prévia e informada” antes de intervenções que as possam impactar.

“Todo o processo de violência e espoliação que aconteceu ao longo de cinco séculos seria, digamos assim, esquecido”, observou. Especificamente quanto ao recorte temporal, o assessor destacou que, embora vencido em várias votações do tribunal, continuou em discussão ali.

Diante dos questionamentos persistentes, o STF escolheu um caso em 2019, o dos Xokleng, como de repercussão geral, de forma a unificar a jurisprudência do tema. O julgamento foi concluído em 2023 e dele saíram as novas diretrizes para os direitos da população indígena. “São 13 teses – a começar pela queda do marco temporal – amplamente favoráveis às comunidades”, pontuou Cupsinski, também integrante da gestão da FIAN Brasil. “Eu destaco o reconhecimento dos direitos indígenas como fundamentais; e a aproximação com o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, com a sentença que condenou o Estado brasileiro no caso dos Xukuru, do qual tive a felicidade de participar.”

Para o advogado, ao aprovar a Lei 14.701 e restabelecer o marco temporal, o Congresso Nacional confrontou a instância guardiã da Constituição.

Cupsinski chamou atenção, ainda, para o caráter problemático da câmara conciliatória do Supremo, convocada pelo ministro Gilmar Mendes, com o objetivo de pacificar o tema. Dos 24 integrantes, apenas seis eram representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que se retirou do processo.

No âmbito dessa câmara, Mendes apresentou em fevereiro uma minuta de projeto de lei complementar que retira o marco temporal, porém possibilita a mineração em terras indígenas e privilegia os interesses econômicos em relação aos originários, além de alterar o procedimento istrativo de demarcação.  Os trabalhos estão previstos para terminar dia 26 de junho. “Nós entendemos que deve ser concluída a ação de repercussão geral – porque tem embargos de declaração para julgar – e é ali que se devem fixar as novas diretrizes. E isso deve ser levado da mesa de conciliação para o Plenário do STF. É lá que deve ser julgado”, concluiu, pontuando que a FIAN apoia a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.582, da Apib (leia mais).

Latifúndios

Em participação remota, o assessor de Recursos Naturais e Financeirização da FIAN Internacional, Philip Seufert, adiantou informações de relatório que viria a ser lançado nesta terça (3) sobre a concentração de terras e a grilagem em todos os continentes. “Os dez maiores latifundiários têm propriedades de mais de 410 mil quilômetros quadrados, uma área maior que a do Japão ou do Paraguai”, enfatizou. “Isso tem a ver com posse de terra, mas também com injustiça climática e perda da biodiversidade, por conta do desmatamento.”

Seufert comentou que a maioria dos latifúndios está no Sul global e que o Brasil está muito presente na lista. “Um Estado como o brasileiro tem uma representação para sua população, mas também para a América Latina e o mundo”, analisou. “Isso mostra a importância da cooperação, não só governamental, mas também da sociedade civil.”

Fizeram parte da mesa o vice-reitor da Dom Helder, professor Franclim Brito; o procurador da República Hélder Magno da Silva; e o defensor público da União Celso Gabriel Rezende.

A segunda mesa foi presidida pela professora Mariza Rios, do Centro Universitário Dom Helder, também presidenta da FIAN. Pela Dom Helder participaram ainda os docentes André Prado de Vasconcelos e Francine Figueiredo Nogueira e as alunas Isabelle Lopes e Gisele Rondas. Os outros integrantes foram o professor Fernando Jayme e a integrante do Coletivo dos Estudantes Indígenas (Colei) Anaine Anikualo Taukane, representando a UFMG, e a assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Lethicia Reis de Guimarães.

“Por que a gente discute o tema ainda?”, questionou Anaine, do povo Pankararu. “Discordo de que seja uma tese. Na academia, a gente a por uma série de fases e estudos para formular uma tese.”

Ela remeteu ao conceito da psicóloga Geni Núñez sobre os impactos das práticas coloniais sobre o pensamento e a cultura. “Precisamos pensar o quanto a colonização nos traz a monocultura. “Nós não somos uma única cultura, nós reproduzimos. O Direito dessa forma [hegemônica] também nos traz a monocultura”, comparou.

Anaine enfatizou que não cabe conciliação no caso em questão. Citando outro pensador indígena, Davi Kopenawa, ela evocou a imagem da queda do céu, que se relaciona à crise ambiental e climática. “A gente tem que evitar essa queda. Mas quem vai evitar não são só os povos indígenas.”

Ficção

Lethicia Guimarães, do Cimi, também questionou o marco temporal como tese: “A gente ouve muito falar assim, mas ele é uma ficção jurídica. Estão tentando formas de colocá-lo no Direito brasileiro”. Ela descreveu a Lei 14.701 como inconstitucional pela materialidade (seu teor, aquilo que ela implica), mas também pela forma como foi construída. “Contraria não só a Convenção 169 da OIT como o artigo 232 da nossa Constituição”, afirmou

Para Fernando Jayme, a discussão do marco ofende o próprio Direito. “O que o Congresso fez foi uma agressão ao STF, que não respondeu à altura – pelo contrário, foi conivente”, disse. Ele qualificou o processo como viciado, pela falta de representação de uma das partes. “Dá-se um verniz de legitimidade para a violência que se pratica contra a cidadania e o estado de direito”, avaliou. Para o professor, a sociedade está assistindo ivamente a esse atropelo. “Acredito naquilo  que a Constituição coloca: construir uma sociedade justa,  fraterna, plural e sem preconceitos”, contrapôs.

Durante o seminário, grupos de alunas e alunos apresentaram sínteses, preparadas ao longo de dois meses, sobre assuntos como os marcos legais dos direitos territoriais, a jurisprudência sobre o marco temporal, os impactos nas políticas públicas e as perspectivas das comunidades sobre o debate nas esferas legislativas, executivas e judiciais. Leia mais e veja mais fotos.